Coluna

Alucard afunda em fake news

CACHORRO FEZ MAL A MOÇA é a manchete, em letras garrafais, estampada no alto da primeira página do jornal O Trilho, publicação considerada um dos veículos de comunicação tida como “imprensa marrom”, e que deixou alarmada a população de Alucard. A moradora de um sobrado, Lia, conhecida no bairro como “correio ambulante”, desde as primeiras horas do dia daquele que seria um dos mais rigorosos do inverno, assumiu prontidão na janela. E abordou Nandinha, camareira de hotel de alta rotatividade, especulando que a tal moça da manchete era Belinha.

-Essa guria, que anda prá cima e prá baixo com aquele cachorro grandão, lambe-lasca, preto e branco, tem hábitos estranhos. Usa shortinhos curtinhos, exibindo a tatuagem colorida de flor de lótus nas polpas das nádegas, e blusa transparente, sem sutiã, com as tetas que parecem bicos de mamadeira. A Clô, mulher do Jean-Pierre, indignada, agarrou-a pelos cabelos e a sacudiu aos gritos de “vá se vestir decentemente, perua”. Jean-Pierre, quando via Belinha, entrava em parafuso e a galanteava. Clô o flagrou sussurrando à guria que “gostaria de ser seu cãozinho de estimação”.

Nandinha, plantada debaixo da janela de Lia, balançou a cabeça, surpresa, e perguntou:

 - Uai, você tem certeza? Ela é adepta de zoofilia, Lia? O fato de usar roupas avançadas não a incrimina. A guria é boa gente. Vive como a maioria dos jovens, quebrando preconceitos.

Lia, solteirona, uma das mais fervorosas integrantes do movimento TFP - Tradição, Família e Propriedade -, tinha relação sexual às escondidas com o carpinteiro aposentado Val, desde que ele fora a casa dela consertar os pés da mesa de jantar estilo colonial. O que Lia não sabia é que, Edna, sua vizinha de parede, ouvia os seus gemidos ofegantes ao fazer com Val as posições “carrinho de mão” e “mestre do sofá” do método Kama Sutra. E espalhou o caso, comentado aos cochichos, principalmente, entre beatas nas missas domingueiras.

-Que trem doido esse, Athaliba, da Lia relacionar Belinha com a manchete espalhafatosa do jornal, imaginando coisas horrorosas pelo fato dela ter muita estimação ao cachorro.

-Uai, Marineth, o trem tá descarrilando. Alucard afunda em fake news, em profunda crise, com o fim da exploração do minério de ferro. Paira no ar prenúncio de estouro da boiada se não se encontrar novas fontes de arrecadação financeira. Nesse caldo, Lia, que é alienada, passa os olhos nas manchetes sensacionalistas, sem ir ao conteúdo, recheado de cascatas e apelações. E se acha bem informada, também, trocando mensagens fictícias nas redes sociais.

-Mas, Athaliba, essas manchetes de O Trilho desnorteiam a cabeça de qualquer cristão.

-É verdade, Marineth. Pega os incautos pelo avesso. A manchete em questão plagia a que um jornal carioca publicou na década de 50.  Cachorro fez mal a moça se referia à intoxicação por cachorro-quente estragado e comido por uma moça na praia do Rio de Janeiro. Trata-se de caso idêntico, em ambiente diferente que teria ocorrido recentemente em quiosque no bairro da Praia, em Alucard, que não tem mar. A nota jornalística no matutino carioca não passava de cinco linhas, no pé da página da seção de polícia. No caso de Alucard, o fato circulou em redes sociais e pode ser fake news. Vamos deixar o assunto à reflexão das pessoas, provocado nesta crônica, enquanto a disseminação de notícias falsas aumenta nas redes sociais. Pois não cabe o se, no universo do sim e do não. E é preciso estar atento para “não comprar gato por lebre”. Como diz Antônio Crispim no poema A flor e a náusea: “Olhos sujos no relógio da torre/Não, o tempo não chegou de completa justiça/O tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera/O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse”.

Por falar no querido e saudoso poeta Antônio Crispim, veja o poema Flor de Alucard, em memória dele:

 

Nos versos de “A flor e a náusea”, saudoso poeta itabirano,

Tornei-me amante da poesia, quando ainda era um menino.

Já na minha fase operacional de vida, me sagrou o destino,

No Correio da Manhã entrar e, você, no JB, prosar todo ano.

 

Nas redações, nossa fase romântica; hoje, o Rio belo, insano,

Não dá vontade de ir aos morros e favelas como peregrino.

Ah! “Que triste são as coisas” que sofremos, não por engano,

Como pescar em águas turvas sem isca, arpão, em bote fino.

 

É chama da esperança, poética ou não, a flor brotada na rua,

Cuja “cor não se percebe”, que reluz ao sol e em noite de lua,

E, é vista a légua de distância da terra, mesmo estando longe.

 

Da cidade que vieste das bandas de Minas Gerais, pura e nua,

Agora opressa servil ao vil metal em minério, feia, não é crua;

Mas, poeta, colhi uma fã sua, com espiritualismo de monge.

 

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS.

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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